Gestação Portal de Cura
Gestação, um portal de cura.
Trabalho final do curso de Doulagem Ikunle Acolhimento Ancestral
Introdução:
Esse trabalho aborda a experiência gestacional, embasado no curso de formação de doulas negras e indígenas do instituto Ikunle. Nesse sentido, essa pesquisa inclina-se ao ativismo pela “humanização”, ou seja, que constroi práticas com objetivo de “cura” e resgate da tradição na gestação, parto e pós-parto, levando em consideração o recorte histórico e social.
Dessa forma, a pesquisa vai abordar os dois pólos da realidade – a visão centrada no controle médico, que revela o sub-lugar que os corpos gestantes ocupam no prisma do diagnóstico do “obstetrismo hegemônico”. E a antítese exclusiva, que dá o tom desse curso: o resgate da sabedoria ancestral, nesse caso, abordando a fitoterapia e o servir holístico da doulagem, que acompanha toda a jornada da gestação e considera a pessoa em completude.
Quando nossa linguagem, cultura e conexão com nosso Criador original foi arrancado de nós no grande sequestro, o conhecido fenômeno da escravização transatlântica de africanos, o significado disso repercutiria na vida do futuro. Embora nos afastemos muito do caminho ancestral, é nossa responsabilidade devolver o significado e respeito merecido, àqueles sob os quais, em seus ombros nos levantamos.
A sociedade do corpo-máquina
Ao analisar o discurso e a narrativa construída pela influência neocolonial, acerca do conceito de “reprodução”, algumas questões merecem exposição. Ao definir a reprodução como sendo crucial para a sobrevivência da espécie, essa crença demonstra ser atravessada por interesses políticos, socioeconômicos e culturais.
Os interesses governamentais defendidos no século XIX, refletem na intersecção entre gênero, poder e governança. É interessante notar como o intuito do controle social vem incessantemente, trabalhando para manter os corpos desconectados do poder natural. Ao ponto que vemos surgir a ideia de mecanização do corpo, onde por denotação, o útero foi equiparado como fábrica para reprodução de mão de obra e bens.
Essas construções sociais criaram uma cultura visual equivalente a metáfora da produção capitalista, e assim percebemos que tudo é uma construção a partir da destruição e inversão de valores. Desse modo, o corpo da mulher e o nascimento sendo desconstruído, e substituído para, intencionalmente, ser funcional a um sistema de trabalho e lucro.
Para citar um claro exemplo dos mecanismos de controle, no Brasil Imperial temos a chamada “Vulgarização da Ciência” , que foi uma campanha empregada por homens considerados os intelecto-médico da sociedade, por que portavam títulos das Universidades de Medicina do Rio De Janeiro e Bahia. Esses homens que detêm o conhecimento médico, foram responsáveis por disseminar o conhecimento ao alcance popular. De acordo com sua própria vontade e interesse, esses homens poderiam ditar as regras sobre maternidade, desde a educação perinatal e até mesmo dava conselhos e atributos necessários para uma mulher ser uma boa mãe, com o que ela deveria se vestir e comer. O mais interessante, é também, notar nessa época imperial, o aparecimento da figura da “commadre”, mulheres que partejavam sem autorização médica. No entanto, havia um discurso depreciativo em direção a essas mulheres, que eram rejeitadas por que elas representavam a medicina popular, a qual foi descredenciada pela ciência acadêmica do século XIX e as Práticas Medicinais do Império.
Quando olhamos pro passado, para encontrar outros modelos de sociedade, não conseguimos ir muito longe além das grandiosas civilizações kemitas, os quais registros remontam a tempos imemoráveis. Segundo a embaixadora de bem-estar holística Queen Afua, a sociedade kemita se mantinha a partir de princípios espirituais pautados em NTR, que sofreu a invasão dos pastores nômades asiáticos, os responsáveis a incutir o consumo de carne naquela cultura.
“Meus ancestrais fundaram a inteira sociedade sobre o Divino Espirito de NTR, que os mantinham em estado de contínua purificação, meditação, bem-estar, e harmonia da alma, corpo e mente. Tudo que eles faziam era sagrado e guiado pelo NTR– do seu trabalho a sua vestimenta, do seu relacionamento a suas casas, templos, e governo. A inteira sociedade era direcionada por 42 leis de Maat, o código moral e ética que depois inspirou os 10 Mandamentos.”
As sociedades antigas africanas nos presentearam com a arte, agricultura, música, reflexologia, cantigas de cura, ciência, astrologia, e muito mais – ou seja, a beleza do mundo e riqueza espiritual. É com autodeterminação que podemos proteger e trazer de volta o caminho natural que nos deu glória em tempos antigos.
Partindo de um recorte social, pontua-se a realidade da Síndrome Pós-traumática da Escravidão (PTSD). Segundo Joy Degruy, é uma condição que surge após a exposição a um trauma severo e leva ao trauma multigeracional. Sendo o principal sintoma, reviver o evento traumático, a partir da resposta do estresse emocional, isolamento, irritabilidade, sentimentos profundos de culpa, medo e desesperança. A Síndrome Pós-Traumática da Escravidõa, impacta profundamente a autoimagem, relações sociais, saúde mental e física das pessoas negras.
A doula nesse sentido é pivô na “aplicação da justiça” que a Dr Degruy também defende, como sendo o antídoto para a desordem. Ao defender a comunidade, e a conexão entre mãe e bebe, e o cuidado, ela trás a possibilidade de reescrever a experiência social e compensar o código normalizado para as pessoas de afrodescendência.
A Doula
Os saberes e tecnologias promovidos pelas doulas partem de uma ética de um posicionamento crítico e criativo frente a face do “obstetrismo hegemônico”. Seu papel principal é proporcionar conforto e segurança para a mulher, ajudando-a a enfrentar os desafios do trabalho de parto com mais confiança, atua como uma guia experiente, promovendo um ambiente acolhedor e respeitando as escolhas da mulher, o que pode contribuir para uma experiência de parto mais positiva e humanizada.
Nosso legado e história afirma que o parto é um ato social e fisiológico, ao receber o apoio e a instrução, a gestante reescreve sua experiência nos princípios da visão holística, e comunitária. Essa é uma decisão pautada na determinação e também afirma a potencialidade natural do seu corpo
O útero
Identificar o útero como um centro de criação e de poder, que está conectado a nossa mente e espírito, é a base da sabedoria do ventre, a sabedoria ancestral. Resgatar a função do ventre e erradicar os traços da sindrome pós traumatica da escravidão, é essencial para compreensão do que é holistico, sagrado e pleno.
A sociedade nos forçou a ver o útero como única e exclusiva função de ter bebês, quando a sabedoria ancestral entende o útero conectado a todos os sistema do corpo femenino, e esse sistema físico é a morada de uma cosmologia, dentro do nosso corpo.
A sacerdotisa kemética MakheruAmem interpretou no seu livro “Unwombed: Unlocking the Universal Uterus”, o útero e suas relação com o cérebro, onde ela identificou cada parte do útero e sua conexão com as diferentes partes do cérebro. Para essa autora o útero tem 8 funções além de reprodução, sendo elas: reprodução, regeneração, iluminação, desenvolvimento neurológico, sensualidade.
A Fitoterapia nas Etapas da Gestação
As plantas utilizadas na fitoterapia são conhecidas como medicinais, e a sua origem é o uso popular. Utilizando o esquema de alquimia ancestral para a classificação das plantas, e com objetivo de oferecer uma abordagem organizada nos cuidados perinatais, vamos identificar duas classes de ervas: expansoras e concentradoras.
As ações medicinais que nos interessam podem abranger o físico e espiritual, por isso é extremamente importante a escuta ativa, empatia com as emoções e histórico da gestante, verificando se há desordens psico emocionais (como ansiedade ou stress) que podem ser auxiliadas com as ervas, para o processamento mais gentil e suave, incentivando a buscar ajuda médica terapeuta e/ou psicológica.
A visão holística, propõe o bem-estar, também reconhece o Sagrado em tudo e no todo. Por isso, quando estamos lidando com o sistema de crenças da gestante, sendo cristianismo, budismo, Ifá, etc… ao apresentar a maneira do cuidado de saúde holística, é necessário reconhecermos o Criador como fundador do divino.
O uso popular reconhece que na alquimia das ervas, a ciência se mistura com a espiritualidade. Os estudos modernos oferecem uma compreensão mais ampla para traduzir a linguagem espiritual e energética do corpo. Enquanto a base da espiritualidade reconhece que o corpo abriga a essência vital, “O templo do Altíssimo começa com o corpo humano, que abriga nossa vida, a essência de nossa existência" (Haile Selassie). Essa ideia enfatiza que a verdadeira espiritualidade está enraizada no eu físico, e assim, a ciência traduz em termos técnicos, por isso o cuidado com
Desde a concepção até o pós-parto, as ervas oferecem um apoio. E com a guiança da doula integra-se esses saberes e instruções. Da alimentação adequada, nutritiva e purificadora ao “corpo-templo”. Reconhecendo a medicina natural de chás de ervas que apoiam o sistema nervoso central, sistema digestivo e cardiovascular, utilizando a fitoterapia para o bem-estar emocional, assim como técnicas de respiração que preparam suporte, e a educação perinatal, preparamos um regimento positivo no cotidiano da gestante.
O uso de ervas expansoras auxiliam nas questões emocionais, por isso ao criar um vínculo com a gestante, precisamos estar munidas dessa sabedoria das ervas expansoras. Essas ervas têm a função de energizar, equilibrar, alegrar, doar prosperar.
O uso das ervas concentradoras auxiliam na construção de novos padrões, facilitando a transformação, ideal para a adoção de novos hábitos saudáveis, elas têm o poder de aglutinar energias positivas, desligando energias negativas.
Dessa forma, uma das características essenciais é a intenção e cuidado que é transmitido quando escolhemos nutrir e manter a saúde da gravidez através das ervas.
Ervas para usar na gravidez
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Folha de Framboesa
Benefícios para Gravidez: Uma erva para saúde do útero, uma das ervas mais seguras para gravidez e sistema reprodutivo, na medida que ajuda a tonificar o útero para o parto. Não faz as contrações serem mais fortes, mas deixam as contrações mais produtivas, o que deixa o parto mais fácil e rápido (especialmente se forem usados no final da gravidez). Regula os hormônios do pós-parto. Melhora o enjoo matinal.
Obs: É considerada uma “erva tônica’’, ou seja, melhora a saúde geral, equilibrando e sustentando o fluir da energia e foco do corpo. Contém alcaloides que fortalece e tonifica os músculos da região pélvica, incluindo o útero. É altamente nutritiva, contém Vitamina C e E, cálcio e ferro. É uma fonte suave de vitaminas do plexo B, cálcio e potássio.
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Folha de Urtiga
Benefícios para Gravidez: Fortalece os músculos, combate câimbras, diminui a dor muscular no corpo todo, e especialmente no fim da gestação quando espera-se que o bebe fique mais pesado e pressiona o nervo ciático. Também diminui dor no útero e cólicas, sendo ótima para o pós parto. Aumenta a quantidade e qualidade do leite materno.
Obs: Planta conhecida por conter um dos mais altos níveis de clorofila, logo, ótima para o sangue, aumentando hemoglobina e prevenindo hemorragias. É ótima no tratamento das hemorroidas de gravidez, na medida que é um adstringente suave e altamente nutritivo que fortalece e tonifica os vasos sanguíneos, e na manutenção da elasticidade das artérias. Contém as principais vitaminas pro corpo e desenvolvimento do corpo humano (A,C,D, K potássio, cálcio, fósforo, ferro, enxofre, ácido fólico)
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Camomila:
Nome científico:
Benefícios para a gestação: Atua muito bem no sistema digestivo e nervoso. É antiinflamatório. Calmante natural pro nervosismo, faz a pessoa manter o foco e centraliza, sem deixar sonolenta.
Obs: A camomila contém a combinação e equilíbrio de ser carminativa e um tônico amargo. Também é ótima para a digestão nervosa, como podemos perceber os padrões da ansiedade e irritabilidade afetam a digestão (gases, refluxo, perca/excesso de apetite…). Por ser rica em propriedades voláteis e essenciais, é interessante notar o distinto óleo azul que surge do composto orgânico azuleno e camazuleno, responsáveis por modular a inflamação e sedar o calor e irritação do corpo.
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Cannabis
Nome científico: Cannabis sativa
Benefícios para a gestação: Melhora o humor, o bem-estar mental, físico e espiritual, além de aumentar o prazer e controlar o estresse.
Obs: Desde a década de 1980, pesquisadores e médicos estão descobrindo benefícios medicinais e terapêuticos da planta para tratar condições como náuseas, ansiedade e dores físicas. Estudos realizados na Universidade de Calcutá, em 2017, têm apontado para o uso saudável, sem evidências que demonstrem desfechos adversos no parto e nem mesmo prejudicial para o desenvolvimento do bebe.
Em 2016, outro estudo relata que o uso da maconha não é um fator de risco, como o uso do tabaco. Existe uma problemática acerca da toxicidade da fumaça da combustão, entretanto, conclui-se que essa toxicidade está diretamente ligada às propriedades na fumaça, e não nos compostos orgânicos da cannabis.
O grande desafio da questão é obter dados confiáveis sobre a dosagem, o que é bem relativo, quando é considerado outros fatores como o estilo de vida, o consumo de álcool e tabaco. Deve-se destacar a importância da decisão informada da gestante, dentro de fontes reais.
“O Partejar e a Farmacopéia de Dona Flor”
O livro “O Partejar e a Farmacopéia de Dona Flor” é cheio de acolhimento e cura, e compõe a bibliografia do curso Formação de Doulas Ikunle Acolhimento Ancestral. Nesse livro encontrei muito conhecimento sobre pré-natal, parto, pós-parto. Contendo ensinamentos de preparo de plantas e outros usos. A segunda parte do livro apresenta a farmacopéia de Dona Flor, um extenso catálogo que te explica com a noção de linguagem popular, o que torna a medicina mais poderosa.
Assim, ao ler, com a mente aberta para essa essência da medicina popular, encontrará instruções valiosas para assistir seus atendimentos. O óleo de mamona, para proteger o períneo no momento do parto, o chá do cabelo de milho para pressão alta de gravidez – são algumas das pérolas de sabedoria transmitidas no livro.
Métodos de preparo de Ervas
As diferentes formas de consumo de ervas medicinais incluem infusão, decocção, tinturas, cataplasmas e óleo essencial, cada uma com métodos específicos de preparo.
A infusão é feita colocando-se as folhas ou partes mais delicadas da planta em água fervente, abafando e deixando em repouso por cerca de 5 a 15 minutos, após o que a bebida é coada e consumida, ideal para folhas e flores. A decocção é um método usado para partes mais rígidas, como raízes, cascas e talos; a planta é colocada em água fria e levada à fervura por cerca de 15 minutos, seguida de descanso antes do consumo, garantindo a extração dos princípios ativos mais fortes.
As tinturas são preparações alcoólicas feitas pela maceração da planta triturada em álcool, geralmente de cereais, por um período que pode variar de 10 a 21 dias. Durante esse tempo, o recipiente deve ser agitado regularmente para permitir a extração máxima dos compostos ativos. A tintura é concentrada e usada em doses pequenas, sendo comum para uso interno ou em casos em que se deseja uma ação rápida. Já os cataplasmas são compressas feitas com partes da planta amassadas ou cozidas, aplicadas externamente sobre a pele para tratar inflamações, dores ou feridas, promovendo um efeito local direto das propriedades medicinais do vegetal.
O óleo essencial é obtido por destilação a vapor das partes da planta e é um extracto altamente concentrado e volátil, usado principalmente para aromaterapia ou aplicação tópica diluída em óleos carreadores, devido à sua potência. Ele captura a essência aromática da planta e seus compostos terapêuticos em alta concentração. Essas diferentes formas de consumo permitem que as ervas sejam aproveitadas de maneiras variadas, respeitando as características químicas das plantas e os objetivos terapêuticos desejados.
Considerações Finais
Essa pesquisa revela que a história tem nos amaldiçoado um resultado de dor, precariedade e traumas, no processo da gestação ao nascimento. Embora essa seja apenas metade da verdade, o despertar e resgate do nosso poder ressurge.
E desse renascimento, o papel da doula preparada para ser uma guia confiável, uma presença acolhedora, um servir transformador de vida. A doula certifica que está tudo de acordo com a vontade da grávida, ela garante que a sua comunidade e pessoas especiais vão estar com ela da forma apropriada, e o contato pele a pele do bebe.
São inúmeras as técnicas leves de promoção de saúde holística para a gravidez, nesse quesito os ancestrais nos deixou uma infinidade de saberes, que o Espírito tem nos chamado a descobrir e educar os nossos.
Os métodos não-farmacológicos devem ser aplicados para alívio da dor, esse curso me despertou para entender que o parto é também, um evento psíquico e natural, não apenas físico.
Referências
Conner SN, Bedell V., Lipsey K., Macones GA, Cahill AG e Tuuli MG (2016). Materno
Uso de maconha e desfechos neonatais adversos: uma revisão sistemática e meta-análise.
Obstetrícia e Ginecologia, 128:713–23. doi:10.1097/AOG.0000000000001649
Florentina Pereira Santos. O partejar e a farmacopeia de Dona Flor: histórias e ensinamentos de uma mestra quilombola. Organizadora Juliana Floriano Toledo Watson; coordenadora Natália Cristina Aniceto Ramos; ilustração Ani Ganzala; fotografia Melissa Maurer. Brasília, DF: Avá Editora
Afua, Queen. Sacred Woman: A Guide to Healing the Feminine Body, Mind, and Spirit. One World, 2001.
Amen, Maat em Makheru. Unwimbed: Unlock the Universal Uterus. CreateSpace Independent Publishing Platform, 2017
Delanerolle G, Elneil S, Sivakumar A, Kurmi O, Pathiraja V, Ikwuka D, Nguyen NT, Rathnayake N, Phiri P, Eleje GU. Reproductive politics and women's empowerment; how does geopolitics control women? Front Glob Womens Health. 2025 Oct 10;6:1666773. doi: 10.3389/fgwh.2025.1666773. PMID: 41180302; PMCID: PMC12572937.